São quatro rostos - entre tantos - de ex-alunos que nesta fase dão o seu melhor pela sociedade: um médico luta contra a pandemia no país vizinho, uma enfermeira trata dos doentes no país europeu com mais mortes por covid-19, um engenheiro coordena a certificação de máscaras à venda no mercado e uma professora alimenta centenas de pessoas carenciadas por dia.
 
Pedro Ventura Aguiar
Formou-se pela Escola de Medicina em 2009 e trabalha no Hospital Clínic i Provincial de Barcelona, um dos hospitais com mais casos em Espanha. Antes esteve no Centro Hospitalar do Porto, mais concretamente no Serviço de Nefrologia.

Como tem sido o seu dia-a-dia?
Neste hospital realizam-se alguns dos tratamentos mais inovadores do mundo, como o transplante renal por cirurgia robótica ou o tratamento do cancro através de células modificadas geneticamente. Isso tudo passou para segundo plano numa “sexta-feira, 13”, a de março de 2020. Em menos de duas semanas, as unidades de cuidados intensivos passaram a dedicar-se exclusivamente a pessoas infetadas com covid-19, as cirurgias agendadas foram suspensas e os internamentos limitados aos doentes indispensáveis. Os momentos de maior ansiedade foram os que antecederam esta completa transformação. O contacto com doentes, familiares e colegas de trabalho gerava alguma desconfiança e intranquilidade. Passei a trabalhar numa unidade de internamento para pacientes com covid-19. Foi uma experiência incrível de trabalho multidisciplinar e de equipa. Uma grande aprendizagem. De repente, diluíram-se especialidades, cargos e funções.
 
Houve algum episódio que o tenha marcado mais?
Vivi muitas situações que nunca esquecerei e que mudaram a minha postura perante a vida e a doença. Por exemplo, naquele meu primeiro dia, depois de uma visita geral, contactei os familiares para os informar do estado dos seus entes queridos. A maioria foi incapaz de conter as lágrimas ao telefone. Estavam sem notícias há três dias e esperavam o pior. No dia seguinte, ao levantar a t-shirt da sua farda empapada em suor, vi a palavra “medo” gravada nos olhos de uma colega enquanto a auscultava na copa do serviço. Foi internada uma semana depois por complicações respiratórias causadas pelo covid-19. Marcou-me ainda a expressão perdida de uma mulher que teve alta no mesmo dia em que o marido foi reencaminhado para os cuidados intensivos – estavam internados juntos há dez dias. 
 
Este é talvez dos maiores desafios colocados aos profissionais de saúde nas últimas décadas...
Por acaso, não concordo. É verdade que foi uma situação limite, de risco de infeção individual e de tratar uma doença para a qual existia pouca ou nenhuma evidência científica. Mas o mediatismo da covid-19 está mais relacionado com o facto de colocar em destaque a fragilidade dos sistemas de saúde. A atividade e os desafios diários que enfrentam os profissionais de saúde são incríveis. Com poucos recursos, trabalho fora de horas, empatia e dedicação, têm sido verdadeiramente notáveis para tratar doenças com uma taxa de mortalidade superior ao habitual. São os verdadeiros heróis, com pouco conseguem ter grande impacto nas populações locais.
 
Já se consegue ver luz ao fundo do túnel? Como antevê os próximos meses?
O confinamento deve ter sido das medidas mais difíceis de tomar, mas seguramente a única que permite sentir hoje que se pode voltar a alguma normalidade. Em Barcelona, o contágio diminuiu muito e o número de internamentos é agora residual. Há que olhar para o futuro com cautela, mas acredito que com as medidas “mínimas” de distanciamento social se poderá evitar um novo surto.
 
Que perceção tem da situação em Portugal?
Todos comentam comigo como Portugal “lidou” bem com a situação. Respondo que o “pessimismo” português foi o nosso melhor aliado. Depois de viver seis anos com espanhóis, a verdade é que somos mesmo diferentes. Aqui, teria sido muito complicado estabelecer o confinamento no momento em que Portugal o decretou. Tem que ver com diferenças culturais, históricas e políticas. Neste caso, jogou a “nosso” favor.
 

António Braz Costa
Licenciado em 1988 em Engenharia Metalomecânica, é diretor-geral do CITEVE – Centro Tecnológico das Indústrias Têxtil e do Vestuário, responsável no país pela certificação de centenas de máscaras. É também administrador do Centro de Nanotecnologia e Materiais Técnicos, Funcionais e Inteligentes (CeNTI) e presidente da Rede Europeia de Organizações de Investigação Têxtil.
 
O que tem feito o CITEVE neste âmbito?
A nossa intervenção teve quatro fases. A primeira foi perceber que Portugal tinha dificuldade em aprovisionar os materiais necessários para a produção de máscaras. Esses materiais são muito diferentes dos utilizados pelo setor têxtil português. Ou seja, perante a eminência de haver rutura de stock e dificuldades de aprovisionamento através da importação, o primeiro passo foi tentar identificar matérias-primas que pudessem ser usadas para o efeito. Fizemos testes com muitas empresas e desafiamo-las a adaptarem as suas linhas de produção. Esta fase coincidiu com um clima de voluntarismo das próprias empresas, dispostas a fabricar máscaras para oferecer. Passamos depois à segunda fase, em que foi preciso ajudar as empresas na produção deste tipo de produtos, através da disponibilização de informação técnica. O terceiro momento coincidiu com o estabelecimento de requisitos para as máscaras sociais, tendo originado um boom em termos de pedidos de certificação. Começaram a chegar aos nossos laboratórios cerca de 200 amostras por dia. Encontramo-nos agora na última fase, em que as empresas portuguesas estão a ser contactadas por compradores internacionais da Europa e dos EUA.
 
O objetivo foi munir a população de equipamento de proteção para regressar à “normalidade” de forma mais segura?
Sim, mas essa questão já está resolvida. Tivemos que lutar contra o tempo porque era necessário arrancar com a produção para responder às necessidades do Serviço Nacional de Saúde e dos consumidores. Portugal está a produzir milhões de máscaras por dia, o que significa que a comercialização dentro de portas deixou de ser um problema. Agora queremos ajudar as nossas empresas a exportarem os seus produtos.
 
Qual é o papel da ciência e inovação neste combate à pandemia?
Partimos de um ponto em que o conhecimento em Portugal e na Europa sobre máscaras têxteis era “zero”. A ciência manifesta-se quando vai buscar ao baú tudo o que já pensou e desenvolveu – principalmente na área dos equipamentos de proteção individual – para encontrar soluções rápidas. Se não existisse esse background, seria impossível termos dado o salto num prazo tão curto. Muitos dos desafios do futuro poderão ser resolvidos com materiais têxteis. Os tempos pós-covid-19 serão muito interessantes no desenvolvimento de novas linhas científicas. Vamos retomar uma certa normalidade, mas isso não significa que não fique desta pandemia um conjunto de preocupações na mente dos consumidores e das autoridades, no sentido de existirem maiores graus de proteção – e é aí que a ciência e a tecnologia vão estar completamente na primeira linha.
 
As parcerias entre empresas, universidades e centros tecnológicos podem ajudar a dar este salto?
É a única forma possível. Sem empresas não há produção, sem universidades não há geração de conhecimento e sem centros tecnológicos não existe o papel de interface. Da mesma maneira que a universidade é a entidade talhada para ir muitos anos à frente, pensando em coisas radicalmente novas, os centros tecnológicos tendem a ter também maior capacidade operacional. Daí a importância de quem está mais próximo do terreno, com algumas atividades rotineiras e com mecanismos organizacionais orientados para a prestação de serviços e suporte às empresas. Quanto melhor funcionar este triângulo, melhor funcionará o país.
 

Teresa Almeida
A vimaranense de 26 anos é licenciada em Enfermagem. Em 2016 decidiu emigrar para Oxford, no Reino Unido, onde trabalha no Hospital John Radcliffe. Nos últimos dois meses tem passado os dias na sua Unidade de Cuidados Intensivos (UCI), readaptada para tratar exclusivamente pacientes com covid-19.
 
Como correu o seu primeiro dia de pandemia no Reino Unido?
Já passaram dez semanas de combate à covid-19 e com elas a incerteza e ansiedade que marcaram aquele primeiro turno. A UCI já tinha na altura uma zona preparada para receber este tipo de doentes e sabíamos que era inevitável. Numa fase em que o número de casos já tinha disparado na capital, a cidade de Oxford estava pronta e de mangas arregaçadas para pôr mãos à obra e, naturalmente, dar resposta ao novo desafio. Tenho trabalhado muito mais. Felizmente, começamos a contar, além dos 120 enfermeiros habituais, com a ajuda de mais 190 ex-colegas. Tem sido uma aventura!
 
Quais foram os momentos mais complicados?
Cuidar de alguém em contexto hospitalar deve ser personalizado. Cada doente é único e merece que os cuidados sejam adaptados à sua situação. Este é, sem dúvida, um papel importantíssimo que é desempenhado todos os dias pelos enfermeiros. A personalização nos cuidados perdeu-se um pouco para que os recursos fossem otimizados face ao elevado número de doentes. O mais complicado foi a falta de tempo, quer para estar ao lado de alguém que precisava de companhia, como para conhecer melhor a história dos pacientes.
 
A covid-19 obrigou-a a crescer?
Sem dúvida! Fez-me crescer a nível profissional, por me permitir colocar em prática de forma muito mais autónoma o que aprendi na UMinho e ao longo do primeiro ano na UCI e, claro, por me encontrar num ambiente completamente diferente, em que tenho de usar sempre equipamento de proteção individual. E em termos pessoais também cresci. Aprendi a gerir situações de stress, dias menos bons e a estar longe de casa e da família por tempo indeterminado.

O Reino Unido é o país europeu com mais mortes por covid-19 e o segundo a nível mundial, após os EUA. Como avalia a atuação do governo nesta luta?
Se há algo que fui aprendendo ao longo dos últimos quatros anos em Inglaterra é que os britânicos primam por quererem marcar a diferença. Uma pandemia não é exceção à regra. Será bom ou mau? Os números falam por si. Acho que as orientações do governo foram/são pouco claras, confusas até.

Gostava de ter ajudado Portugal a ultrapassar esta fase?
Faria em Portugal, com todo o gosto e empenho, o que faço aqui se o meu país me tivesse dado condições para tal. A situação dos enfermeiros em Portugal é desanimadora. Ainda assim, têm dado o seu melhor para levar isto para a frente. O governo está a guiar as pessoas na direção certa, resta agora valorizar quem sai de casa todos os dias para lutar contra esta pandemia.
 

Helena Pina-Vaz
A alumna de Ensino de Português e Francês e diretora do Colégio Luso-Internacional de Braga (CLIB) lidera o movimento "Refeições Solidárias para Virar a Página", que serve cerca de 300 refeições por dia aos mais carenciados. O coletivo conta com mais de 200 voluntários de diversas idades e nacionalidades, incluindo vários refugiados.
 
Os pedidos de ajuda são muitos?
O número de pedidos cresceu bastante nesta fase, mas temos conseguido dar resposta graças à dinâmica inesperada que se gerou à volta da ideia. Um entusiasmo imparável de quem doa, de quem confeciona e de quem distribui estas refeições. Tudo é doado, todos somos voluntários. Já foram servidas 20.000 refeições em dez semanas de atividade.
 
O que a tem surpreendido mais?
Como voluntários, sentimo-nos gratos pela oportunidade e preparados para continuar. Encaramos este serviço em prol do bem comum como quem coloca gentilmente um pouco de reconforto e paz nos pratos dos beneficiários, desejando que a necessidade da nossa ajuda seja rapidamente ultrapassada. Tentamos ser discretos nos gestos e alegres na nossa ação e isso devolve-nos um pouco da paz interior que esta pandemia tentou roubar-nos. Os beneficiários têm estabelecido muitos laços connosco, enviam mensagens e palavras carinhosas. Entregamos-lhes todos os dias um postal com uma mensagem elaborada por alunos do CLIB. Até já temos um convívio planeado entre voluntários e beneficiários, mal seja permitido um evento sem máscaras e com abraços.
 
A cantina do CLIB é o centro de operações do movimento. Este envolvimento do próprio colégio pretende servir também de exemplo de cidadania para as gerações mais novas?
Tudo nasceu pelo facto de podermos usar a cantina do CLIB. É muito natural que assim tenha sido, porque o colégio tem já, felizmente, uma longa experiência de total abertura para a resolução de problemas e é assim que os nossos estudantes são formados. Eles e as famílias fazem sempre parte das nossas iniciativas e esta não foi exceção.
 
Os refugiados, que normalmente são apoiados pelo próprio movimento, juntaram-se para ajudar na confeção e distribuição das refeições. O que significa isso para si?
Os refugiados que acolhemos foram recebidos na sequência de um protocolo com a Plataforma de Apoio aos Refugiados, com a qual o CLIB colabora desde 2015. Estas pessoas são acolhidas com muito afeto e respeito pelo seu sofrimento e dignidade. Por isso, a sua inserção na sociedade acontece de forma muito natural. Sentem-se cidadãos, apercebem-se das necessidades e querem sempre juntar-se a quem os acolheu para a resolução de problemas que são de todos. Fico muito grata por este gesto de ternura!
 
A covid-19 gerou na sociedade uma onda de solidariedade. Este clima de entreajuda veio para ficar?
Em todas as iniciativas solidárias em que tenho estado envolvida, sinto a solidariedade fácil dos portugueses. Somos muito assim, comovemo-nos com os problemas dos outros. As necessidades alimentares, em particular, não deixam ninguém indiferente. Não me parece que tenha a ver só com a covid-19, tem a ver com o sentir português, com a nossa alma!