Em plenos Jogos Olímpicos de Tóquio'2020, conversamos com a mestre em Psicologia Desportiva da UMinho, psicóloga do Comité Olímpico de Portugal, fundadora da InnerChoice e consultora em várias empresas. Em 20 anos de carreira, Ana Bispo Ramires já trabalhou com atletas de diversas modalidades, além de outros “profissionais de alta performance”, como médicos, militares e gestores de topo.
 
Foi convidada há quatro anos para integrar a Direção de Medicina Desportiva do Comité Olímpico de Portugal (COP), o que significa que acompanha os 92 atletas portugueses aos Jogos de Tóquio 2020. Além da preparação física, como têm trabalhado a dimensão psicológica dos nossos atletas?
O desafio que me foi colocado em 2017 pelo presidente José Manuel Constantino foi o de implementar de raiz a área da Psicologia no COP. Esta área foi integrada, como é natural, na Direção de Medicina Desportiva, sob orientação do dr. Gomes Pereira, juntamente com a área da Nutrição Desportiva, sob responsabilidade da dra. Cláudia Minderico. Uma das missões desta direção foi lançar o “Programa TOP Performance”, cujo intuito seria promover a partilha de conhecimento nas diferentes disciplinas científicas que suportam o treino, junto das federações e dos seus atletas. Depois de algumas “dores de crescimento” iniciais, e também graças à integração mais tarde do dr. Pedro Roque, que passou a coordenar o projeto, elevámos os seus níveis de impacto. Este era um passo fundamental, uma vez que a formação dos diferentes agentes no que diz respeito ao papel da Psicologia do Desporto permitiu não só dotar as pessoas de conhecimentos necessários para saberem distinguir uma prática científica de um conjunto de outras práticas sem qualquer tipo de fundamentação e/ou regulamentação, bem como esclarecer os importantes contributos da área para a elevação dos índices de performance de atletas, treinadores, árbitros, dirigentes e encarregados de educação.
 
Como está a correr o trabalho direto com os atletas?
O acompanhamento nesta área resulta, antes de mais, da escolha do interessado. A responsabilidade de encontrar soluções para este tipo de apoio está, em primeira instância, nos clubes, só depois nas federações. O Comité Olímpico surge, numa terceira vaga, para colmatar as eventuais lacunas que possam existir no meio. Neste enquadramento, contamos com alguns colegas com níveis de especialização elevado que têm provido este tipo de apoio aos nossos atletas olímpicos, seja em contexto de clube, federativo ou privado. E isso facilita a minha tarefa em contexto de missão, uma vez que já existe uma predisposição maior nas pessoas, caso seja necessária alguma intervenção.
 
Explique-nos melhor o que fazem os psicólogos do desporto/performance...
No início dos anos 2000, o perfil de atuação era bastante distinto daquele que encontramos hoje, felizmente! Outrora, do meu ponto de vista, demasiadamente focado na “eficiência do atleta”, hoje muito mais direcionado na elevação dos indicadores de saúde mental do indivíduo, dos diferentes interlocutores e da organização, como propulsores de uma carreira desportiva de elevado desempenho. Esta abordagem sistémica muda tudo!

“Temos muito a aprender com os nossos atletas”

Que impacto tem tido a pandemia no bem-estar e performance dos desportistas?
Os nossos atletas sofreram um impacto enorme com a pandemia, mas, ao contrário do cidadão comum, também foram os mais rápidos a reagir e a transformar a crise em oportunidade. Isto, claro, é uma avaliação genérica e não casuística! Tiveram a oportunidade de exercer e transitar as suas competências psico-emocionais da área desportiva para a vida. A população em geral tem muito a aprender com eles. Cheguei a escrever sobre o tema para o Tribuna Expresso.

Os Jogos Olímpicos estão a decorrer desde sexta-feira. Como se sente?
Creio que toda a missão se sente profundamente comprometida em criar a melhor experiência possível aos atletas (e treinadores) que representam Portugal. Nestes Jogos, a área da Psicologia e da Nutrição tem a sua “estreia” enquanto disciplinas científicas integradas na Direção de Medicina do COP e, por essa razão, partilham naturalmente do mesmo sentimento.
 
A fasquia para a comitiva portuguesa está elevada?
Podemos ter diferentes abordagens quando escolhemos a nossa missão de trabalhar em Psicologia do Desporto/Performance. A minha é trabalhar pessoas e não “fasquias”. O propósito da área da Psicologia, e de toda a missão do COP, é que os atletas tenham a melhor experiência possível dentro de um enquadramento completamente novo, decorrente da covid’19.
 
Em Tóquio temos seis atletas alunos/alumni da UMinho – o nadador José Paulo Lopes, o taekwondista Rui Bragança e os andebolistas Fábio Magalhães, Rui Silva, Humberto Gomes, Diogo Branquinho? Como vê a ligação desta academia ao desporto?
Um exemplo extraordinariamente bem-sucedido que importa ser analisado retrospetivamente para que se possa compreender e repetir este tipo de articulação bem-sucedida entre a área académica e a área desportiva. Garantidamente, uma cultura “pró-desporto” que desde sempre tem caracterizado esta instituição.

Já trabalhou com Scolari, Fátima Lopes e Rui Patrício

Nos últimos vinte anos já trabalhou com dezenas de atletas, árbitros e treinadores, mas também com outros profissionais de atividades de alta performance, como médicos, militares, gestores de topo, músicos...
É verdade, já foram alguns [risos]! No site anabisporamires.com, partilhei testemunhos cedidos gentilmente por alguns clientes com quem já trabalhei – como a apresentadora Fátima Lopes, o guarda-redes Rui Patrício ou o diretor artístico do Cirque du Soleil, Hugo Martins –, com o propósito de aumentar a consciencialização da importância desta área no que respeita à elevação dos indicadores de bem-estar, saúde mental e desempenho.
 
Houve alguma situação mais caricata?
Muitas... mas todas elas confidenciais [risos]!
 
Também foi psicóloga no SL Benfica durante oito anos. Como foi a experiência?
Entrei a convite do dr. Pedro Almeida, então coordenador da área no Departamento de Futebol. Quem assume este papel atualmente é a dra. Tatiana Ferreira, o que é um enorme orgulho para mim por ter tido o privilégio de ser a sua orientadora de estágio e professora. Foi, claramente, uma experiência de enorme crescimento pessoal e profissional, que me permitiu, mais tarde, trabalhar com Luiz Filipe Scolari e a minha colega Regina Brandão, no âmbito da seleção nacional A de futebol. A possibilidade de trabalhar num clube que aposta na área há algum tempo permite-nos outros tipos de intervenção, mais planeadas e sustentadas, com diferentes interlocutores e, por isso, mais eficientes do ponto de vista dos resultados que conseguimos alcançar.
 
Chegou a ver o falecimento do futebolista Miklós Fehér em pleno jogo contra o Vitória de Guimarães. Como se levanta o ânimo de uma equipa depois de uma situação destas?
Lamentavelmente, nesse ano, não faleceu apenas o Miklós, mas também o capitão da nossa equipa de juniores, Bruno Baião. Prefiro não particularizar por razões de bom senso e respeito pelas famílias. Gostaria, contudo, de aproveitar a oportunidade para referir que a área do trauma é de enorme desconhecimento em Portugal (na altura era ainda mais) e que é preciso ver o seu papel rapidamente reconhecido nas diferentes organizações. Ao dia de hoje é incompreensível que se coloque uma equipa a jogar depois de esta ter assistido à reanimação cardíaca de um colega, como aconteceu, por exemplo, no jogo entre a Dinamarca e Finlândia, do Euro’2020. É perfeitamente medieval e revelador de um desconhecimento atroz sobre a área do trauma e dos possíveis compromissos em termos de saúde mental.
 
Os desportistas, treinadores e árbitros mostram-se recetivos?
Desde sempre! A maior resistência encontra-se, de uma forma global, na classe dos dirigentes, que revela um enorme desconhecimento na área da Psicologia do Desporto/Performance. O curioso é que, em contexto empresarial, o recurso a esta dimensão já é prática comum dos grandes gestores e CEO do nosso país. Aqui está um conhecimento que o desporto poderia “importar” do contexto corporativo. Fica, por isso, mais uma “provocação”, dirigida aos dirigentes desportivos, para integrarem esta dimensão do treino de competências no seu desenvolvimento profissional.
 
Quais são as maiores dificuldades e desafios da profissão?
Quem quer trabalhar em alto rendimento não deve apenas “querer”, tem mesmo que “fazer acontecer”. Por outras palavras, partilhamos com os nossos atletas não só o desafio à nossa capacidade de resistência à frustração, de resiliência e de superação, bem como à nossa capacidade de trabalhar em equipa. Apesar de o trabalho em equipa ser dos temas mais abordados pelos psicólogos, é também onde temos mais dificuldade em mostrar competência. Fica a provocação [risos]! A maior dificuldade é conseguirmos proteger a nossa profissão, entregando trabalho sustentado cientificamente e termos presente, a cada momento, os princípios éticos e deontológicos que devem reger a nossa prática diária.
 
UMinho, uma “casa onde é sempre um gosto voltar”
 
Como surgiu o seu interesse pela Psicologia Desportiva?
Uma consequência natural da minha experiência enquanto atleta de andebol. Tive o privilégio de ser formada por uma das escolas de referência em Lisboa, o Liceu Passos Manuel, e no ano em que era suposto escolher as áreas de especialização, estágio e tese monográfica, o ISPA - Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida alargou o campo de hipóteses para uma série de áreas mais especificas, onde se incluía a Psicologia do Desporto. Não hesitei!
 
Mais tarde escolheu a UMinho para fazer um mestrado na área. Porquê?
Por duas razões especificas. Primeiro, pelo professor José Cruz, uma enorme referência da área na altura (e desde sempre). Em segundo lugar, porque senti, acima de tudo, uma grande capacidade do curso em acolher as minhas limitações de agenda. Na altura dava aulas no ISPA, trabalhava no Departamento de Futebol do SL Benfica e tinha a decorrer dois projetos de longa duração, com a seleção nacional de andebol feminino (sub-18) e a de ginástica artística masculina. Em boa verdade, foi preciso muita “acrobacia” para fazer tudo isto! A compreensão e o apoio do professor José Cruz foram determinantes.
 
Recorda-se do seu primeiro dia?
Antes de ingressar no mestrado, já tinha estado na UMinho, no âmbito do primeiro encontro nacional sobre excelência e performance, organizado no virar do século. Na altura acompanhei um grupo de alunos que aplicou pela primeira vez o modelo de Hanin, que avalia o impacto das emoções no desempenho para outras áreas que não a desportiva, focando-se em profissionais como bombeiros, médicos, entre outros.
 
Após o mestrado, criou também em 2008 a empresa de Inner Choice - Human Development & Wellbeing. 
Nasceu com o propósito de acentuar a responsabilidade que temos em mudar o nosso presente para termos o futuro que desejamos. Assenta na responsabilidade das escolhas individuais e nos seus impactos no retorno que temos, lançando em paralelo, como suporte de transformação, um conjunto de ferramentas que se encontram no contexto desportivo. O modelo que adotamos, com os indivíduos e organizações que nos procuram, em contexto de equipas multidisciplinares, segue um pouco a lógica “lessons learn from sports for life”.
 
As preferências de Ana Bispo Ramires
 
Um livro: Toda a coleção do “Astérix”. É difícil escolher!
Um filme: “And the band played on” (1993), de Roger Spottiswoode, e “Gia” (1998), de Michael Cristofer.
Uma música: Portuguesa.
Um clube: Seleção nacional. Todas!
Um passatempo: Passear os meus cães.
Um desporto: Vou ao ginásio e faço caminhadas... essenciais para preservar qualidades cognitivas e boa disposição!
Uma viagem: Todas as que estão por fazer.
Um prato: Sushi. Calha bem agora que vou para Tóquio [sorriso].
Um vício: A minha “família escolhida”.
Uma personalidade: Aquelas pessoas que, invisivelmente, melhoram o nosso dia-a-dia com aquela pequena ação ou gesto. Todos os “ilustres anónimos” que nos fazem ser mais e melhor.
Um momento: Um abraço.
Um sonho: Que a saúde mental assuma rapidamente o merecido destaque em Portugal.
Uma curiosidade: Hummm... Hummmm... Sem resposta [risos]!
A UMinho: Uma instituição a quem sou muito grata pela experiência de crescimento com colegas e professores, que me ajudou a ser “mais”. Inequivocamente, uma “casa” onde é sempre um gosto voltar.