​Em entrevista ao Negócios, a alumna da UMinho e autora do livro "Smart Cities - Inclusão, Sustentabilidade, Resiliência", Sara Fernandes, sublinha que só um planeamento estratégico de longo prazo e abrangendo os seis pilares desta transformação vai permitir edificar "cidades resilientes e inclusivas", diminuindo os riscos de exclusão social neste processo marcado por "transformações repentinas desencadeadas por saltos tecnológicos abruptos". 

Quais são os critérios e as características que definem uma smart city (SC)? 
Na perspectiva que sustenta um plano estratégico das chamadas smartcities, na verdadeira concepção da expressão, envolve seis pilares: a transformação dos cidadãos; a transformação das instituições ( smart governate ); a transformação da economia; a parte da mobilidade - e esta é uma das que mais se fala em Portugal -; o ambiente inteligente; e a melhoria da qualidade de vida ( smarter living ), pois as pessoas são um bocadinho esquecidas nas transformações repentinas desencadeadas pelos saltos tecnológicos abruptos que marcam a história das cidades. 

A aposta parece estar a ser feita isoladamente em alguns desses pilares... 
As cidades têm optado por fazê-lo dessa forma, por todos os constrangimentos que têm - desde os orçamentais até à dificuldade de trazer para cima da mesa todas as entidades que fazem parte de uma cidade. Por exemplo, Guimarães está actualmente a fazer um plano para ser uma cidade verde, que assente no [pilar] ambiental. Não existe um plano estratégico com estes seis pilares, o que vai gerar sempre lacunas. Sem algo pensado a 20 anos, como foi feito em Curitiba, não vamos ter cidades resilientes e inclusivas. 

Ambiente e mobilidade têm sido as áreas mais trabalhadas e faladas. É por ser mais imediato do que transformar a economia, os cidadãos ou as instituições? 
No caso da economia até envolve todos os agentes que vivem numa cidade ou numa região. Não podemos pensar só na cidade, mas em tudo o que nos rodeia e aí já teríamos de pensar numa região 'símil". 
Porque se à volta tiver outras cidades com graves problemas económicos, todo o potencial fica diminuído. Um plano estratégico de vários anos - médio e longo prazo - e depois planos de acção que sejam inclusive delineados com cidades vizinhas, isso sim, seria uma smart iniciativa para podermos tirar todo o potencial das cidades inteligentes. 

O que são cidades economicamente mais atractivas e quais os condutores dessa "smart local economy"? ​
São cidades que conseguem captar investimento, talento e empreendedores, que se conseguem reinventar a nível económico. A smart economy é caracterizada efectivamente pelo uso de capital humano: conhecimento, as capacidades, a criatividade, a transformação das ideias em processos e produtos valiosos. Assenta no capital humano. Mas não podemos falar em economia inteligente se não estamos a fazer transformação dos cidadãos, que assenta na participação cívica, na transparência. Isto está tudo ligado. 

E no âmbito da desigualdade, a falta dessas novas competências não aumenta o risco de exclusão social? 
As pessoas vão adquirir essas competências, vão aprendendo. É preciso é haver condições institucionais para isso acontecer - além da vontade das pessoas. Muitas vezes fala-se em atirar dinheiro para cima do problema, mas isso não resolve nada. É preciso uma formação diferenciada da tradicional, que pr​omova a criatividade. Com a transformação muito rápida promovida pela tecnologia - e a transformação dá-se porque existe tecnologia - vai ser necessário que as instituições e a economia se reinventem para se poder sobreviver. 
Não podemos dizer: vamos parar o desenvolvimento tecnológico para as pessoas irem aprender . Não é assim que funciona. As pessoas têm de adquirir skills para entender as transformações que existem e poderem colaborar nas novas transformações. 

A evolução de smart cities para as 'smart nations' é algo natural? 

Se tivermos uma estratégia para SC, mesmo definida a nível central, e depois planos de acções em que cada cidade temo poder de gerir os seus planos como bem entende - como tem os seus orçamentos, como faz todas as alterações nas instituições, etc. -, então podemos caminhar (ou, para mim, é um processo natural) para termos uma smart nation . 

Essa agenda devia ser centralizada, embora adaptada a nível local? 
Acredito que sim. Algumas cidades até podem ter capacidade [para desenhar o plano], mas é preciso envolver as cidades parceiras, por exemplo. Se tivermos directrizes, se pensarmos no que queremos para o país como uma smart nation , então temos de envolver toda a gente. Não podemos pensar em Braga corno smart city e depois ter as cidades à volta a usar o papel e a caneta e a obrigar as pessoas a irem presencialmente tratar dos seus processos. Por muita vontade que tenham, as cidades acabam por não o fazer [liderar esse processo]. E são precisos incentivos. Os incêndios são um bom exemplo: as leis existiam, mas só quando o Estado disse `tem mesmo de ser, acabou' é que toda a gente se envolveu na prevenção e na limpeza das matas. 


"É essencial uma tecnologia sem erros" 

Sara Fernandes dramatiza a questão da fiabilidade da tecnologia, que tem de ser "confiável, robusta e segura" para evitar danos que paralisem as cidades inteligentes. 

Quais os custos da transição de cidade tradicional para smart city (SC)? Por que diz que temos de "pensar criticamente sobre a tecnologia que colocamos nas cidades durante o próximo século"? 
Hoje estamos muito dependentes da tecnologia. E se não tivermos tecnologia que seja confiável, robusta e segura, corremos o risco sério de perdermos a informação. Não podemos simplesmente dizer que somos uma cidade ou um país altamente tecnológico se as coisas não estiverem ligadas entre si e se não forem também confiáveis. É essencial uma tecnologia sem erros. 

É quase certo que vão ocorrer erros. A dimensão do dano é que será substancialmente maior quando a tecnologia falhar nas SC. 

É verdade, existem sempre. Temos de estar preparados para os erros. De uma empresa de software e não podemos simplesmente receber uma mensagem a dizer não está a responder . As coisas têm de funcionar. A questão é, ao máximo, fazer software confiável, testado, e a partir daí mesmo admitindo erros - estancar e conseguir resolver facilmente os problemas. (...) Em termos legais, temos de pensar sempre na protecção de dados e numa estratégia clara de cibersegurança: como se lida e quais as consequências para quem faz pirataria informática. 

Por outro lado, escreve que "precisamos de retirar os engenheiros do volante e deixar que as pessoas e as comunidades decidam para onde devemos ir". Porquê? 

Dou o exemplo de uma cidade na Coreia do Sul [Songdo] criada de raiz como SC e que não está a ter sucesso. Poucas pessoas vivem lá porque não se identificam com o espaço. Portanto, não podemos retirar nem as pessoas nem as instituições [do plano]. Daí a necessidade de haver uma estratégia a longo prazo e perceber bem a tecnologia que usamos para que a cidade possa ser sustentável, apelativa e atraente para viver. 



Cinco temas com impacto presente e futuro 

O livro "Smart Cities - Inclusão, Sustentabilidade, Resiliência" faz parte da colecção "Ciência Disruptiva", um projecto editorial lançado em 2016 pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) em parceria com a editora Glaciar. Abrangendo algumas das áreas científicas de crescimento exponencial e que mais podem impactar a sociedade no futuro, inclui também as obras "Engenharia Genética - O Futuro Já Começou", de Sílvia Curado; "O Admirável Mundo da Bioética", de Maria do Céu Patrão Neves; e "Robótica e Trabalho - o Futuro Hoje", de António Brandão Moniz. Em breve será publicado o quinto volume desta colecção, dedicado ao tema da revolução digital. O livro é da autoria de Rogério Carapuça, que tem formação na área da Engenharia Electrotécnica e Computadores, preside à Associação Portuguesa para o Desenvolvimento das Comunicações (APDC) e é administrador de várias empresas do grupo Novabase. 


Entre o Minho e a capital 

Nascida em Hamburgo (Alemanha) há 38 anos, Sara Fernandes formou-se em Matemática e Ciências da Computação na Universidade do Minho, onde também está a concluir o doutoramento em Informática. Autora do relatório "EGOV em Portugal: Situação, Desafios e Estratégias", é consultora de várias empresas e agências governamentais e contribuiu para diversos projectos internacionais nas áreas de Mobile Governance, e-Participation, Public Service Delivery e Open Government. Gosta de ver futebol, cinema, passear e "como qualquer mulher [gosta] de praticar cardio nos shoppings ”. Depois de ter passado por Itália e Macau, vive actualmente entre Lisboa e Guimarães, cidade onde funciona desde 2014 uma unidade operacional da Universidade das Nações Unidas dedicada à governação electrónica, que ajudou a fundar e a trazer para Portugal. 


Entrevista: negocios.pt
F​otografia: UMinho