Explicar a sexualidade  aos filhos sem preconceitos e sem medo de responder às perguntas mais difíceis. Pornografia, abusos sexuais ou lidar com as diferenças. A sexóloga, doutoranda em Estudos da Criança, na especialidade de Saúde Infantil, na Universidade do Minho, apresenta hoje, dia 19, o livro Chamar as Coisas pelos Nomes, na Fnac dos Armazéns do Chiado. E logo aí percebemos que Vânia Beliz defende que "o ideal é não inventar, ser objectivo e adequar as respostas à compreensão da criança, depois verificar o que ela aprendeu."

No livro explica-se como falar com crianças  e adolescentes, consoante a idade. Por exemplo, à clássica pergunta - como nascem os bebés? - pais de miúdos de 4 anos podem "explicar que a mulher tem uma célula e que o homem tem outra e que quando elas se juntam dentro do corpo da mulher pode formar se um bebé." Fácil? E quando já tem 8 anos, Vânia Beliz defende que já deve falar de outra forma: "A criança já tem, normalmente, capacidade para perceber que esse encontro resulta da entrada do pénis dentro da vagina." 
​Num país onde ainda existem muitos mitos sobre a sexualidade, por exemplo, sobre a masturbação ou a primeira vez, é importante acabar com eles. É que, como defende a sexóloga, muitos desdes conceitos errados podem até influenciar a felicidade dos filhos. É importante apoiar os pais numa área essencial para a saúde e bem-estar das crianças e jovens. E acrescenta: "Constato a dificuldade que ainda existe na abordagem destes temas e as consequências que daí surge."

Desde que começou a carreira nota que os portugueses já sabem falar de sexo?
Acho que continua a existir muita inibição, mantêm-se muitos comportamentos de risco por desconhecimento absoluto e pouca disponibilidade por parte das famílias para falar sobre estes temas. A educação formal nas escolas também tem avançado pouco e ainda não se cumpre a lei que a torna obrigatória. Até a procura dos cuidados de saúde na área do planeamento familiar ainda é difícil para algumas pessoas.

No livro diz que a linguagem é muito importante na conversa sobre sexualidade. Porquê?
Porque teremos de adequar a forma como comunicamos. Não falamos com uma criança de 4 anos da mesma forma que falamos com uma de 8 ou 12. Uma criança de 4 anos pode perguntar de onde vêm os bebés e podemos explicar que a mulher tem uma célula e que o homem tem outra e que quando elas se juntam dentro do corpo da mulher pode formar-se um bebé. 

Aos 8 anos a criança já tem, normalmente, capacidade para perceber que esse encontro resulta da entrada do pénis dentro da vagina. No terceiro ano do primeiro ciclo, já aprendem noções de reprodução, aos 9 anos já existem meninas férteis por isso vamos esconder um facto básico da biologia, porquê? O que há de chocante ou traumatizante, dizer que um órgão-pénis, cresce e entra dentro da vagina?
Traumatizante é existirem tantas crianças a serem expostas a tantos cenários de violência nas suas próprias casas, isso é que nos devia preocupar...

Quais são os principais problemas dos portugueses com o sexo?
Muitas mulheres sentem falta de desejo, dor nas relações sexuais e falta de prazer sexual, muitos homens preocupam-se excessivamente com a performance, preocupando-os o tamanho do órgão, e a duração da relação sexual...Ainda há resistência na procura do médico para a avaliação correta de algumas queixas e vergonha para pedir ajuda para algumas dificuldades que se podiam resolver com relativa facilidade. Ainda estamos demasiado presos à genitalidade como se a fonte de prazer fosse apenas os genitais.

As mulheres já lidam melhor com a sua sexualidade?
Mal seria se nada tivesse mudado, mas ainda é preocupante a falta de conhecimento que a mulher tem da sua genitália e do seu corpo como fonte de prazer. Ainda não conseguimos superar tanto tempo de castração e inibição.

Quais são os mitos do sexo que ainda persistem?
Existem muitos mitos associados à masturbação, à primeira vez... Existem mitos em relação a todas as áreas da sexualidade, alguns são muito castradores e podem influenciar a felicidade dos nossos filhos, por exemplo, não comprar uma boneca ao menino porque isso pode influenciar a sua orientação sexual, ainda existem muitos pais onde isto é impensável, como é possível que ainda se pense isto?

Temos menos preconceitos?
Temos sido convidados a reflectir no respeito e tolerância pela diferença mas ainda somos surpreendidos por comentários que violam os direitos das pessoas, a homofobia existe, mata e perturba muitos adolescentes. Os preconceitos ainda limitam a nossa intimidade tornando-a tantas vezes pobre e desinteressante.

Defende que cabe à família explicar a sexualidade às crianças. O que é mais importante explicar?
É importante comunicar sobre tudo mas quanto mais cedo abordarmos determinados temas melhor. Por exemplo, quando falamos em violência sexual e de género, a prevenção primária pode começar bem cedo, quando brincamos ou estamos com crianças de 4 anos e elas observam no nosso comportamento o que é ser homem e ou mulher.
Existem crianças com 5 anos com discursos que não imaginamos e ideias pré-feitas sobre o que se pode ou não fazer em função do género e sexo: os pais lêem jornais, as mães lêem revistas, as mães cuidam dos bebés porque os pais não conseguem, os pais arranjam as coisas em casa e passam a maior parte do tempo na sala, no sofá e ver televisão ou trabalhar, para muitas crianças as mães nem profissão têm. 
Depois continuamos a educar meninos e meninas de forma diferente, potenciando a sensibilidade das meninas que podem chorar e ficar tristes e castrando os meninos para serem fortes, invencíveis e heróis, tudo isto são narrativas de diferenças que podem, no futuro, abrir portas a comportamentos perigosos. Educar para a igualdade de género, para o respeito pelo outro para a protecção do corpo e da intimidade é muito importante e deve ser feito desde muito cedo.

Qual é a dica mais importante?
Que os pais compreendam que a comunicação não se faz apenas de forma verbal, tantas vezes as crianças trazem para a escola comportamentos e condutas que replicam por simples observação.

É importante perceber que a sexualidade começa desde pequenos?
E constrói-se antes, tantas vezes as famílias projectam no bebé os seus desejos, preparando assim um universo à sua espera. É importante que as famílias reflictam como certos comportamentos podem influenciar a vida das suas crianças, que vestem e brincam com o que desejam. Os primeiros anos do bebé reflectem muito do que os pais desejam e escolhem para os filhos.

Como é que os pais devem lidar com a curiosidade dos filhos pelo corpo? 
A curiosidade faz parte do desenvolvimento normal da criança que se observa e descobre diferenças, questiona para aprender. É através das suas dúvidas a criança aprofunda o seu conhecimento. O ideal é não inventar, ser objectivo e adequar as respostas à compreensão da criança, depois verificar o que ela aprendeu.

Como se deve falar da homossexualidade com as crianças?
Na educação pré-escolar as crianças já falam de identidade e da família e devem saber que existem famílias diferentes e que isso não tem qualquer problema, se as crianças que são educadas a ser do Sporting respeitam e convivem com os colegas de outros clubes, porque não ensinamos da mesma maneira que duas pessoas do mesmo sexo podem constituir uma família? Porque será que nos melindra tanto as escolhas sexuais das outras pessoas?  Claro que se isso for uma dificuldade para a família as crianças terão dificuldade em compreender, aceitar e respeitar as opções dos outros. Aprender a respeitar o outro é algo que devemos aprender com a família e isso não significa respeitar e aceitar apenas quem é igual a mim, principalmente se isso implicar a violação da liberdade e direitos do outro.

No seu livro refere que as crianças mais propensas a serem vítimas. Porquê?
A violência sexual não é apenas violação e muitas pessoas confundem este conceito ignorando outras formas de violência sexual. Uma em cada 5 crianças é vítima de violência sexual, e essa vulnerabilidade está muitas vezes na sua inocência, no desconhecido. Uma criança de 4 anos não terá noção que deixar mexer no pénis ou na vulva é um problema, se não for alertada para isso. Pode acreditar que isso acontece com outras crianças. Existem muitas formas de violência sexual que não causam dor e maltrato físico e por isso muitas vezes as crianças não conseguem perceber que estão em risco. O facto de as crianças não saberem falar das suas emoções e do seu corpo também é um factor de potenciador de riscos.

Acha que muitos dos problemas dos adultos com o sexo, surgem na infância?
Alguns sim, as dificuldades na gestão do relacionamento amoroso, a forma como nos entregamos, ou não, está muitas vezes relacionada com os vínculos que estabelecemos com quem cuida de nós. A forma como aprendemos sobre o nosso corpo faz nos aceitar e respeitar melhor a nossa imagem e consolidar a nossa auto-estima. Se somos educados com a ideia de que o sexo é algo só com consequências, gravidez indesejada e doenças poderemos vir a ter dificuldade de viver uma intimidade livre e gratificante. Se não aprendemos sobre o funcionamento do corpo não o iremos conhecer, por isso as primeiras aprendizagens são muito importantes e significativas.

Um dos temas que aborda é a pornografia. O que devem os pais dizer sobre este assunto? Como devem lidar? 
Sempre existiu pornografia e ela sempre nos suscitou interesse mas a forma como hoje está disponível é que nos preocupa porque chega aos nossos filhos facilmente, através da Internet e de quase qualquer telefone e completamente descontextualizada. Muitas primeiras relações têm como modelo a pornografia e sem perceberem que muito é irreal, constroem se fantasias sobre como deve ser a intimidade. Mais importante que punir e proibir é prepará-los para o momento em que se vão cruzar com estes conteúdos, explicando que grande parte dos mesmos são irrealistas e servem apenas para excitar as pessoas.

Acha que vivemos numa sociedade excessivamente erotizada – numa altura de selfies, redes sociais e exposição da intimidade – que pode contribuir para a diminuição do desejo sexual?
Não me preocupa tanto a questão da diminuição do desejo mas sim a implicação que viver na fantasia pode trazer para as nossas relações. E na forma como a intimidade perde o seu valor perante tamanha exposição que pode até colocar nos em risco. Subestimamos o poder desta exposição e a liberdade não pode ser confundida com banalidade.​

Entrevista: Sábado