​Fundada a quatro de Novembro de 2015 por cinco mulheres e com sede no Porto - mas âmbito nacional - a Associação Plano i já conseguiu ser notícia pelas suas iniciativas, principalmente com o Estudo Nacional sobre a Violência no Namoro e o Gabinete de Apoio a Vítimas de Violência no Namoro instalado em duas instituições de ensino superior no Porto e na Maia. 

Sofia Neves, uma das fundadoras da associação, é a presidente. 
Doutorada em Psicologia Social pela Universidade do Minho, foi na violência de género que focou o seu trabalho - integrando o grupo de trabalho sobre a violência doméstica e de género da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género. 
Simultaneamente a dirigir a Plano i, é também professora e investigadora do Instituto Universitário da Maia (ISMAI). Ao Igreja Viva, Sofia Neves explica o fenómeno da violência no namoro e o trabalho da associação na prevenção e influência das políticas públicas. 

O que despoletou a vontade de criar a Associação Plano I?
A Plano i nasceu das inquietações de um conjunto de cinco mulheres (comissão fundadora) que sentia, há já algum tempo, a necessidade de criar uma estrutura associativa diferenciada, mas complementar às existentes na altura, no norte do país. Tendo como eixo norteador a promoção dos Direitos Humanos, a Plano i tem procurado, desde a sua criação, responder aos desafios sociais actuais, prevenindo e combatendo as desigualdades e a violência. 

Em fevereiro deste ano foi publicado o estudo nacional sobre a violência no namoro. Para além de se ficar a saber que uma percentagem maior que a esperada de jovens já foram expostos a este tipo de violência, percebeu-se que existe ainda incompreensão da complexidade deste fenómeno. Como é possível combater isso?
A prevenção e o combate à violência no namoro têm de fazer-se em várias frentes e a diferentes níveis. Nós consideramos que a educação efectiva das crianças e dos e das jovens para a igualdade, para a democracia e para a cidadania, assim como dos agentes educativos de um modo geral, deve ser um dos objectivos prioritários de acção. A desnaturalização do problema e a sua deslegitimação poderão não apenas fazer aumentar a consciência face à condição de se ser vítima, como facilitar os processos de denúncia e a procura de apoio junto de estruturas especializadas. 

Que papel pode ter a Igreja nessa educação?
O discurso das várias instituições sociais, entre as quais a Igreja, deve ser pedagógico, no sentido de dotar os jovens e as jovens de sentido crítico, ajudando a reconhecer e a agir contra a violência. É dever de todas pugnar pela criação de uma cultura de tolerância zero à violência, seja qual for a sua expressão. A qualificação dos profissionais que intervêm com vítimas e agressores deve ser igualmente uma estratégia de intervenção. Quanto mais capacitados estiverem estes grupos profissionais, nos domínios da saúde, da justiça, entre outros, mais eficaz será o combate a um flagelo que sabemos ser de grande magnitude em Portugal e no mundo. Os média também devem ser fontes privilegiadas de informação, não reforçando estereótipos e preconceitos. A ignorância é uma forte aliada dos agressores. 

Qual é a melhor forma de explicar aos jovens como identificar a violência e rejeitar formas pouco saudáveis de estar numa relação?
Educando-os. Tornando-os conscientes de como se manifesta a violência e do que ela significa. 
Informando-os dos mecanismos que têm ao seu dispor com vista à solicitação de apoio, à realização de denúncia e à reivindicação de direitos fundamentais. Fazendo com que tanto os jovens como as jovens não aceitem qualquer forma de atentado à sua dignidade. 

As vítimas permanecem nas relações por falta de informação?
Por vezes, talvez aconteça. Contudo, a manutenção nas relações abusivas deve ser analisada à luz de uma miríade complexa de factores e que pode variar de caso para caso. 
As vítimas podem permanecer nas relações abusivas por razões de ordem individual, familiar, comunitária ou social. A vergonha, o medo, o sentimento de desprotecção e as dificuldades associadas à tomada de decisão de pôr fim a uma história que é, em algumas situações, percepcionada como de amor, são, frequentemente, condições paralisantes para as vítimas. 
Adicionalmente, muitas vítimas sustentam crenças conservadoras sobre a intimidade e o amor, o que as constrange na sua decisão de romper as relações em que se encontram. 
As vítimas continuam a ser objecto de estigma e a ter de lidar com representações e práticas sociais que as descredibilizam. São muitas as vozes que as impelem a permanecer. 

A Associação Plano I tem um Gabinete de apoio a vítimas de violência no namoro em duas instituições de ensino superior, no Porto e na Maia. Que resultados tem tido este gabinete? Nota que há procura de ajuda por parte das vítimas? 
Os resultados não são os esperados, tendo em conta a magnitude do flagelo. As vítimas têm, como já disse, vários constrangimentos no que diz respeito ao pedido de apoio e à denúncia. Por outro lado, algumas não se percebem como vítimas ou, percebendo-se, sentem vergonha ou medo de expôr a sua vida. Outras, ainda, desconfiam do sistema e temem ser vitimizadas de novo por ele. E também receiam um agravamento da violência por parte do agressor, uma situação que é comum após a revelação da história a terceiros. 

É possível reduzir a resistência das vítimas em pedir ajuda? Acha que elas (e eles) não acreditam que o sistema as consegue proteger?
Mais uma vez, é preciso apostar na educação e na informação.  Por outro lado, o sistema tem de dar provas de que é credível. Têm sido muitos os exemplos que têm vindo a público ultimamente, revelando que o sistema é, ele mesmo, agressor. 
Isso acentua a vulnerabilidade das vítimas em vez de objectivamente as proteger. 

A violência psicológica pode fazer mais danos na vítima que a violência física? 
A violência psicológica é habitualmente descrita pelas próprias vítimas como mais impactante do que a física. Como geralmente acompanha todas as outras formas de vitimação, tende a ser uma das mais prevalentes. 

Então como pode alguém fora da relação identificar estas formas de violência não-físicas? No estudo nacional é mencionada não só a violência psicológica mas também a violência social e o "stalking"...
Volta a colocar-se a questão da educação e da informação aqui também. Os sinais de controlo e de posse podem ser subtis, mas com a devida atenção são facilmente identificáveis. As vítimas vão evidenciando mudanças nos seus comportamentos e nas suas atitudes, internalizando ou externalizando. Podem, porventura, isolar-se, mostrar-se menos disponíveis para os outros, deprimir e desinvestir das suas rotinas, chegando ao ponto de idear a morte. 
Podem, pelo contrário, envolver-se em comportamentos desviantes, desafiando limites. Do ponto de vista do investimento na escola, podem verificar-se também algumas alterações. As pessoas adultas devem saber ler e interpretar estes sinais, disponibilizar ajuda e encaminhar para as estruturas competentes, como é o caso das estruturas de apoio à vítima. 

O estereótipo de que as mulheres são sempre as vítimas e de que os homens são sempre agressores está a mudar? 
No caso da violência no namoro, mulheres e homens tendem a assumir o duplo estatuto de vítimas e agressores. A vitimização tende a ser mútua e recíproca, nos casos da violência psicológica, física e social, o que não acontece nas situações de violência sexual, em que as vítimas são maioritariamente de sexo feminino. Apesar desta reciprocidade e mutualidade nos papéis de vítima e agressor, os estudos têm vindo a concluir que a violência praticada por rapazes contra raparigas é geralmente mais grave, trazendo consequências mais severas. 

Existe reincidência nos agressores e agressoras?
A investigação científica tem revelado que os agressores de sexo masculino são mais reincidentes do que as agressoras do sexo feminino. Além disso, envolvem-se mais vezes em comportamentos violentos em simultâneo, como a delinquência juvenil. 

Qual é o papel que as associações como a Pano I na prevenção destes casos?
O trabalho associativo das organizações da sociedade civil é muitíssimo relevante. No nosso caso, em particular, procuramos conhecer o fenómeno para intervir sobre ele, articulando com outras organizações e com o Estado, tentando assim contribuir também para a melhoria das políticas públicas nesta matéria. Apostamos em mecanismos de visibilização do problema, como é o caso do Observatório da Violência no Namoro, que nos permite ter acesso a dados que, de outro modo, estariam ocultos no âmbito das cifras negras da criminalidade. 
Em muitas situações organizações como a nossa fazem o trabalho que compete ao Estado. Infelizmente, muitas delas, que são sem fins lucrativos, sobrevivem à custa de financiamentos do Estado português ou da União Europeia, que funcionam a prazo e numa lógica de grande instabilidade. 
A intervenção continuada e sustentável torna-se muito difícil nestas condições.


Entrevista: Diário do Minho