Todos a conhecem pela doçura da sua voz ou pelo significado que dá às palavras que interpreta nas mais bonitas canções. Mas Maria João Faria, residente em Moreira de Cónegos, é muito mais do isso. Recentemente tornou-se a primeira Mestre em Educação Não Formal de Adultos em Portugal com refugiados. Agora partilha a sua experiência a Rádio Vizela

O que representa para a Maria João ser a primeira mestre em educação não formal de adultos em Portugal com refugiados?
Antes demais começo por elucidar sobre o que é educação não formal. A educação não formal é toda a educação que ocorre fora da esfera e contexto escolar. Pode ser desenvolvida não só por entidades que se preocupam com o bem-estar social, como organizações sem fins lucrativos ou associações, como também no nosso seio familiar e espaços de lazer. A educação não-formal busca a promoção da transformação social, a abertura a novas formas práticas de pensar, estar, expressar e compreender o mundo que nos rodeia, de uma forma mais prática.
No meu caso, sou a primeira mestre em educação não formal de adultos em Portugal com refugiados, um público que, para a investigação e intervenção na área de educação de adultos em Portugal, é algo de novo e inovador. A forma como foi aplicada a minha intervenção foi, então, através da educação não-formal. Este facto para mim significa o início de uma grande caminhada, mesmo que seja apenas um exemplo para futuros profissionais da minha área que o queiram aplicar. Sinto também alguma responsabilidade pelo facto de ser o primeiro projeto de investigação e intervenção nesta área, pois não existe nenhum projeto de base, o meu foi realmente o primeiro. Por fim, é um sentimento de grande gratificação e alegria e penso que poderá ser um projeto bastante procurado por profissionais ligados à área da educação.

Mas o que a levou a ter enveredado por um mestrado nesta área?
Além da música que me acompanha desde muito pequena, sempre tive um enorme gosto pela área social e educacional. Quando terminei o ensino secundário na área de Línguas e Humanidades, decidi concorrer para a licenciatura em Educação na Universidade do Minho, que, para os profissionais desta área, é conhecida como sendo uma licenciatura de banda larga pois permite trabalhar com diferentes públicos em diferentes contextos, na área da educação, formação e cultura. 
Deste modo, por ter gostado imenso da licenciatura e por pretender dar continuidade à minha formação nesta área, optei por escolher um dos mestrados profissionalizantes da licenciatura em Educação, mais especificamente o mestrado em Educação de Adultos e Intervenção Comunitária. O mestrado em EAIC tem como campo de ação o empoderamento das pessoas de qualquer faixa etária, religião, cultura, nacionalidade. A educação não formal e a formação são duas grandes formas de trabalhar o empoderamento. O facto de se designar Educação de Adultos, não restringe a possibilidade de trabalhar com crianças e jovens, pois a intervenção comunitária permite a integração desse público. Deste modo, ao longo do mestrado fui-me fascinando pela intervenção comunitária pelo facto de poder realizar “trabalho de campo” através da educação não-formal e da arte. E foi precisamente isso que fiz no projeto IntegrArte.

Que experiências proporcionou a realização deste mestrado?
No primeiro ano do mestrado, comecei por ter uma experiência incrível com crianças e jovens em risco de um bairro social em Guimarães que integravam as atividades de tempo livre da Casa da Juventude de Guimarães. A maioria dos jovens tinham insucesso escolar e as suas famílias encontravam-se desmembradas. A minha intervenção foi realizada através de atividades de educação não-formal, de forma a trabalhar as competências pessoais e sociais destes jovens. Com esta experiência, acabei por ficar voluntária nesta Associação, dando algumas aulas de iniciação de guitarra, chegando a fazer uma apresentação pública no Centro Cultural Vila Flor. Este projeto permitiu-me crescer ao nível pessoal e profissional. Proporcionou-me também a oportunidade de aplicar técnicas de intervenção específicas da EAIC e de conhecer de perto a realidade de crianças e jovens que se encontram nestas condições.
A melhor experiência que tive a nível profissional, pessoal e emocional, foi sem dúvida no segundo ano do mestrado com o estágio curricular no CLIB (Colégio Luso Internacional de Braga), com duas famílias refugiadas. O CLIB é uma instituição particular que acolheu seis famílias refugiadas, desde 2016. O meu projeto foi implementado com duas famílias. A primeira família, uma mãe com três filhos menores, proveniente da República Democrática do Congo, um país que se encontra em guerra civil e em pobreza extrema. A segunda família, um casal com dois filhos menores cuja mulher é oriunda da Ucrânia e o marido do Bangladesh, e dado o facto de ser um casal heterogéneo sofreram de extremo racismo na Ucrânia, Polónia e Áustria.
A finalidade do meu projeto, IntegrArte: um projeto comunitário com famílias refugiadas passou por inserir a arte como uma estratégia de inclusão de pessoas refugiadas na nossa sociedade. A escolha da arte como forma de intervenção neste projeto está relacionada com o seu papel transformador e universal na vida dos seres humanos. A escolha deste tema foi feita com base na minha ligação à arte, mais especificamente à música. Acredito que a educação e a cultura podem ajudar na mudança de mentalidades e a melhorar o mundo. Assim sendo, a minha intervenção foi realizada tanto no CLIB como na residência destas famílias. Criei um atelier de língua portuguesa para que estas famílias aprendessem a ler e a escrever em português pela via não-formal, através do alfabeto analógico. Além do atelier de língua portuguesa, criei o atelier de gastronomia, de visitas guiadas, de música, de danças circulares, de jogos, de artes plásticas e de convívio. Todas as atividades realizadas nestes ateliers permitiram uma troca mútua a nível cultural, artístico e religioso. Permitiu-me conhecer de forma mais aprofundada a situação e a crise dos refugiados em Portugal e no mundo. Aliado a isso, deu-me a oportunidade de conhecer melhor a situação geopolítica e socioeconómica destes países. A questão cultural e religiosa, teve também um forte impacto na minha intervenção pois trabalhei com três religiões e nacionalidades diferentes, consequentemente aprendi imenso sobre a religião destas famílias e as suas tradições. O foco deste projeto foi, não só dar a conhecer e ajudar no processo de integração destas famílias na nossa sociedade, como também permitir que estas famílias tivessem a oportunidade de demonstrar as características das suas culturas. 

Foram sentidas algumas dificuldades no contacto com estas novas realidades?
Sim, senti algumas dificuldades. Na fase inicial por parte da segunda família, oriunda da Ucrânia, que demonstrou alguma resistência em ser ajudada e em compreender a minha função. Essa família tinha um historial complicado, pois já haviam sofrido de racismo e discriminação em três países onde não conseguiram integrar-se. Então porque motivo estaria uma jovem portuguesa a entrevistá-los em inglês e a passar inquéritos através de imagens? No entanto, aos poucos, fui conseguindo dia após dia conquistar a confiança do casal, com pequenos gestos. Desde as aulas de português, à recolha de brinquedos e alimentos, à organização de almoços de convívio com outras famílias refugiadas, esta família foi-se sentindo acolhida.  Inicialmente senti também algumas dificuldades ao nível da comunicação. A família da Ucrânia e Bangladesh, falavam maioritariamente em inglês, no entanto nem sempre foi fácil de compreender.
Dada a variedade na cultura religiosa das famílias (islâmica, católica evangélica e ortodoxa), senti alguma dificuldade em realizar algumas visitas guiadas em que tivesse incluída a visita a santuários ou monumentos religiosos católicos.

Deste mestrado resultou a tese: IntegrArte: um projeto comunitário com famílias refugiadas. Quais foram as principais conclusões deste trabalho?
Não existe conclusão para um trabalho que parece ser infindável, visto que há tanto para fazer com os refugiados e são tantas as responsabilidades por parte de todos os cidadãos portugueses. Cabe a cada um de nós ter a consciência de que necessitamos de sermos mais humanos para que haja mais humanidade.
Contudo, existem algumas notas de reflexão que posso deixar quanto à minha intervenção. Com a implementação do meu projeto, estas famílias passaram a sentir-se mais acolhidas em Portugal porque lhes foram proporcionadas condições para tal. As visitas guiadas por mim organizadas a cidades portuguesas, fizeram com que as famílias conhecessem mais sobre a nossa cultura, tradições, soubessem utilizar os nossos serviços e praticassem a língua portuguesa. As sessões de português permitiram que estas famílias conseguissem falar e escrever em português assim como as atividades de convívio com outras famílias refugiadas e voluntários, promoveram uma maior união e partilha da mesma realidade. Todas as atividades artísticas ajudaram a expressar pensamentos, sentimentos, opiniões relativamente ao que sentiam e sobre tudo o que lhes pertence! Quanto à solidariedade, este projeto mostrou-me mais uma vez que os portugueses são realmente pessoas generosas. Na fase inicial do projeto, quando me encontrava a realizar um diagnóstico de necessidades e fui pela primeira vez às residências das famílias, percebi que as crianças tinham pouquíssimos brinquedos e roupa. Perante essa situação, fiz uma publicação no Facebook a pedir brinquedos e roupa. Foi notável a onda solidária de entreajuda. Familiares, amigos, pessoas conhecidas, não conhecidas e, até mesmo associações fizeram logo recolha de roupas, brinquedos. Obrigada a todos os que contribuíram de alguma forma. A Loja Social de Infias doou imensos brinquedos. Aproveito também para agradecer ao Nélson Leite pela disponibilidade e generosidade. Concluo com este projeto que a educação não-formal e a arte são ferramentas poderosas capazes de pequenas, mas grandes transformações. Por meio da música, dança, expressão plástica, gastronomia, estas famílias sentiram-se realmente bem-vindas e acolhidas no nosso Portugal.

E que lugar continuará a ocupar na vida da Maria João o Colégio Luso-Internacional de Braga?
O Colégio Luso-Internacional de Braga será sempre a primeira grande instituição onde tive a oportunidade de viver das melhores experiências profissionais até ao momento. O CLIB foi o lugar onde tive o privilégio de conhecer famílias que nunca esquecerei e que irei sempre acompanhar. Atualmente, como me encontro a trabalhar noutro local com outro público-alvo, apenas participo como voluntária em algumas atividades organizadas pela PAR (Plataforma de Apoio aos Refugiados) e pela ACM (Alto Comissariado para as Migrações), cujo CLIB continua a participar. As atividades são respetivamente, “Almoço entre PAR’es” e “Família do Lado”. Estas iniciativas consistem em organizar almoços entre famílias refugiadas que vivem em Portugal oriundas de inúmeros países que atravessam esta realidade.

Qual era é missão desempenhada neste Colégio?
A minha missão no CLIB foi, através do meu estágio ajudar na integração destas famílias. Contudo, no decorrer do mesmo acabei por trabalhar com mais famílias, oriundas da Síria, Curdistão, Iraque, Palestina e Turquia. Atualmente, como me encontro a trabalhar noutra instituição, a minha missão no CLIB passa apenas por ser voluntária nas atividades que mencionei anteriormente.

Há ainda muito trabalho a fazer nesta área, ou seja, no acolhimento e integração de refugiados em Portugal?
Portugal é um país que tem sido muito elogiado internacionalmente quanto à questão do acolhimento e integração de refugiados. A PAR (Plataforma de Apoio aos Refugiados) recebeu em 2017 o Prémio Cidadão Europeu no Parlamento Europeu, o que é um incentivo para nós, portugueses, fazermos mais e melhor no que diz respeito à integração dos refugiados. Contudo, o Estado português tem um sistema burocrático bastante lento e por isso existe ainda uma longa batalha e muito trabalho pela frente. Desde o final de 2015 até fevereiro de 2018, Portugal recebeu 1674 refugiados o que significa que há muito trabalho para a intervenção comunitária, para os educadores e para todos os que querem ajudar. Além da assistência básica como o direito ao sistema nacional de saúde e da educação, podemos também ajudar na integração de pessoas que vivem esta realidade.

Será que a maioria das pessoas já reconhece a importância da educação não formal?
Dificilmente... As únicas pessoas que reconhecem e se relacionam com a educação não formal ou, têm relação direta com a mesma, ou por outro lado são seus beneficiários. Ou seja, os meus colegas de curso, os profissionais da área, pessoas que lhe são afetas, ou o público-alvo que toma conhecimento aquando da nossa intervenção.

Agora o que está a Maria João a  fazer a nível profissional?
Neste momento encontro-me a realizar um estágio profissional como animadora sociocultural na Santa Casa da Misericórdia de Vizela, no Lar Torres Soares.

Há pouco tempo a Maria João escrevia na sua página de facebook, citando Paulo Coelho, que “o extraordinário reside nas pessoas comuns”. É de facto possível marcar a diferença na vida das pessoas?
Este ano foi intenso, fico eternamente grata por ter tido a oportunidade de ter como público-alvo da minha intervenção, os refugiados. Sem dúvida que eles foram e são o extraordinário por tudo o que passaram e pela grande força e capacidade de resiliência que têm. Não escolheram passar pelo que atravessaram e é lamentável termos conhecimento de que os interesses étnicos, políticos e económicos passam por cima da dignidade e da vida humana. Que este projeto sirva de inspiração para profissionais desta área e de outras áreas que possam ajudar estas famílias.
Quando Armstrong chegou à lua disse: “Um pequeno passo para Um homem, mas um grande salto para a humanidade”... Longe de mim achar que cheguei à lua, no entanto, tenho noção de que pequenas ações por vezes traduzem grandes mudanças. É preciso mais humanidade, mais empatia, mais compreensão, mais igualdade, mais vida! É um caminho difícil de percorrer, há ainda muito a fazer mas vale muito a pena! Gosto muito daquilo que faço, e o que faço, faço com amor. Agradeço a oportunidade de partilhar este outro lado, tão importante para mim. Um grande bem-haja às famílias com quem trabalhei, foi uma vivência que irei levar para o resto do caminho!

Entrevista: Rádio Vizela