Pouco depois de aterrar nos Países Baixos para dar início à bolsa de doutoramento, Joana viu-se fechada em casa. Com a pandemia, visitas ao laboratório não são tão frequentes e há menos recursos; os eventos internacionais passaram para o plano virtual. Poderia ser uma corrida de obstáculos, mas, com uma bicicleta, é melhor apostar numa prova contra-relógio.

Quando, em Janeiro último, Joana Maria Alves voou para Maastricht, nos Países Baixos, da janela do avião dava para ver o solo a estender-se sem barreiras. Era o futuro a desenrolar-se com sonhos dentro: o de viver noutro país, o de ser investigadora num projecto com o qual se identificou e o de conhecer outras ruas para lá das da cidade onde passaria a maior parte do tempo. Como bolseira de doutoramento do programa Marie Skłodowska-Curie, da Comissão Europeia, a vimaranense de 25 anos investiga “um novo fármaco para a insuficiência cardíaca” na Mirabilis Therapeutics, uma empresa que se dedica ao desenvolvimento de medicamentos para doenças cardiovasculares e distúrbios metabólicos.
 
“Os estudos já tinham sido iniciados e a equipa teve bons resultados. O meu papel é continuar com os estudos farmacológicos: ver a toxicidade, se provoca efeitos adversos, fazer estudos moleculares”, começa por explicar. Chegada àquela cidade, tinha em vista a promessa da “mobilidade entre países europeus e a investigação científica entre diversos países e pessoas”. Cenário cancelado: a pandemia da covid-19 não só limitou movimentos como fechou milhões em casa. Quando a nova aventura de Joana começou a desenhar-se não se esperava que um vírus virasse o mundo ao contrário. Uma entrevista em Novembro de 2019, início do projecto nos últimos dias de Janeiro de 2020. Estava tudo encaminhado. Mas, em Março, “veio o confinamento”.
 
Durante “tempo indeterminado”, as idas ao laboratório “estavam fora de questão”. “Quando ficamos fechados em casa, nem tinha começado [a investigação] em laboratório. Foi muito stressante”, conta. É que o projecto “é de três anos” — e “propostas de extensão não são fazíveis, mesmo com esta situação da covid-19”. Em Junho, “as coisas melhoraram”, já que a universidade abriu e as idas ao laboratório, “por turnos”, voltaram. Mesmo assim, mais um entrave: uma vez que o seu trabalho “tem que ver com métodos moleculares”, muitos dos recursos foram canalizados para os testes à covid-19. “Por isso, estamos a ficar sem materiais. Continuo a ir ao laboratório pontualmente para ir adiantando o que posso”, diz.

Nesta corrida de obstáculos, Joana faz o que pode: participa em cursos online e workshops “para aumentar o currículo”, utilizando o orçamento que a bolsa disponibiliza para formações, aproveita “para escrever e para tratar da tese” e aprofunda conhecimento — mas nunca sozinha. A doutoranda integra o consórcio Train-Heart, financiado pela Comissão Europeia, do qual fazem parte 15 estudantes: todos estão envolvidos na investigação da insuficiência cardíaca (do diagnóstico à abordagem terapêutica, para além dos fármacos), mas em pontos diferentes do continente europeu. A interacção entre todos faz-se no plano virtual; por isso, as reuniões acontecem por videochamadas. Mas não ficam por aí: “Também discutimos artigos e assistimos a palestras dadas por especialistas.” 

Um assunto do coração

Vários caminhos levaram Joana a Maastricht — e é por isso que, agora, recuamos um pouco no tempo. Durante o mestrado em Engenharia Biomédica pela Universidade do Minho, o “bichinho” pela investigação sobrepôs-se “à ideia da gestão hospitalar”. “O meu ramo permite a investigação e a gestão hospitalar, área em que fiz estágio. Só que, na maior parte do quinto ano, fiz investigação e acabei por me apaixonar”, recorda. Estava certa de que se queria aventurar “e ter a experiência internacional”, procurando um projecto semelhante ao da sua tese de mestrado: “A junção entre a biologia molecular e um fármaco que actuava nesse ponto de vista [da insuficiência cardíaca]”.
 
O porquê desta escolha tem tanto de pessoal como de geográfico. Alguns familiares de Joana foram diagnosticados com a doença de Fabry, uma patologia rara, genética e limitativa que ainda não tem cura, apesar de existir um tratamento próprio. Para além disso, terá surgido no século XVII em São Clemente de Sande, uma freguesia vimaranense. Segundo o Hospital da Senhora da Oliveira, em Guimarães, “a doença pode manifestar-se cedo na infância” através de sintomas “gastrointestinais”, “episódios de febre recorrentes e inexplicados” ou “dor neuropática intensa”, por exemplo. Contudo, e porque muito dos sintomas “são semelhantes a outras doenças mais comuns”, a doença de Fabry “é por vezes subdiagnosticada”. Ao longo dos anos, “afecta gradualmente a função dos órgãos vitais”, podendo causar morte prematura “ou morbilidade significativa”, devido a “complicações renais, cardíacas ou cerebrovasculares”.

O fármaco que Joana está a estudar não se relaciona com a doença de Fabry; ainda assim, quer contribuir para uma maior compreensão das doenças cardiovasculares. E é por isso que mergulha “em estudos farmacológicos para ver se o fármaco é viável para seguir em estudos em humanos”, que visa dar resposta a uma das maiores causas de morte a nível mundial. 

Entre o hoi e o olá, o hello

Com a investigação e sem a possibilidade de participar em congressos e eventos internacionais, Joana vai pedalando pelas ruas de Maastricht fora, onde “todas as experiências com bicicletas são aventuras”. Como daquela vez em que não conseguiu arrancar por “ter perdido o equilíbrio”. Ou quando tentou tirar a sua bicicleta da garagem do edifício onde vive e outras seis tombaram de seguida: “Rezei para que ninguém soubesse que tinha sido eu, porque queriam activar o seguro. Por causa de uma bicicleta no chão!”

No entanto, nem tudo são espinhos. “A cidade é grande, mas há muitos espaços verdes, noto que há menos poluição por tudo se fazer de bicicleta. Viver aqui acaba por ser mais saudável e apelativo”, refere. E as pessoas também são “simpáticas e acessíveis” — ainda que algumas se lhe dirijam em holandês, pensando tratar-se de uma conterrânea. E logo se troca um hoi por um hello. “Toda a gente fala inglês, dos mais novos aos mais velhos. Às vezes ficava atrapalhada porque não sabia o que iria encontrar numa cidade nova. Mesmo para ler os rótulos no supermercado, nunca saberias o que contém um produto se não pudesses perguntar em inglês”, conta. Por agora, todos os dias são a vida a acontecer: as idas mais ou menos solitárias ao laboratório, as reuniões virtuais, a vista para a cidade através das janelas da sua casa em Maastricht, dividida com o namorado Pedro, que partiu com ela “sem nada planeado”. Está à procura de um projecto de investigação, mas a oferta, diz Joana, “diminuiu com a pandemia”. Enquanto não aparece a oportunidade certa, desenvolve software para cibersegurança marítima.

A investigadora perspectiva viver nos Países Baixos “entre três e cinco anos”, aproveitando “o máximo possível para conhecer e viajar” — com a esperança de que calcorrear (ou pedalar por) outras ruas sem as restrições que a pandemia trouxe. Depois, sim, regressar. “A investigação em Portugal não é tão valorizada nem tão bem remunerada. E há menos oportunidades do que cá”, aponta, antes de justificar o maior motivo para o regresso já estar nos planos: “Há coisas que também pesam, como a família.” O coração, portanto.
 
Fonte: Público