Na corrida para o domínio na área da inteligência artificial, a luta pelo primeiro lugar é cada vez mais entre os EUA e a China. Sem grandes gigantes tecnológicas para recolher dados - uma das bases para ensinar máquinas a decidir e trabalhar sozinhas -, a Europa vê-se obrigada a encontrar outras formas de avançar na área. Em 2019, as empresas que mais acumulam informação de milhares de pessoas são chinesas e norte-americanas: os EUA têm o Facebook e o Google, e a China tem o portal online Tencent, o motor de busca Baidu e a empresa de comércio electrónico Alibaba. Sabem por onde andam os seus utilizadores, os produtos de que gostam, os vídeos que vêem, as notícias que lêem.

E é dos EUA e da China que há mais patentes a serem registadas na área (os dados são da Organização Mundial da Propriedade Intelectual), com o Governo chinês a de definir a tecnologia made in China uma prioridade para 2025. A sul-coreana Samsung e a japonesa Toshiba também investem muito no desenvolvimento de sistemas inteligentes, com milhares de patentes registadas. "Nunca vamos estar na frente. A China e os EUA investem simplesmente muito mais", resume ao PÚBLICO Cecília Bonefeld-Dahl, directora geral da Digital Europe, uma organização que representa a indústria tecnológica digital na Europa. "Mas ser o primeiro numa área não é uma vantagem eterna. Pode usar-se a metáfora da Ford, que já não é a líder suprema na tecnologia automóvel.

Há mais empresas e há sempre uma segunda onda de inovação", explica Bonefeld-Dahl, que também integra um grupo de 52 peritos criado o ano passado para avançar a estratégia da inteligência artificial na Europa (inclui representantes da academia, sociedade civil e indústria). "É preciso desenvolver os sistemas da forma certa", diz. O actual foco da União Europeia é liderar na criação de sistemas em que os utilizadores podem confiar. Este mês, a Comissão Europeia publicou um "guia ético para inteligência artificial de confiança" para ajudar os Estados-membros a avançar na área respeitando princípios europeus, como o direito à privacidade, autonomia e justiça. "Na União Europeia, temos de ser éticos por princípio para proteger o cidadão", diz ao PÚBLICO Alípio Jorge, investigador da Universidade do Porto e coordenador do plano português para a inteligência artificial. Portugal é um dos Estados-membros a discutir a estratégia europeia na área.

A fase-piloto do guia ético arranca em Junho deste ano. De acordo com o guia, os utilizadores devem saber se uma empresa vai usar os seus dados para treinar algoritmos, e a inteligência artificial deve ter um botão de stop (que pode sempre ser activado por um humano). "As máquinas hoje são muito boas a decidir, mas não a explicar", justifica Jorge. "Se criamos máquinas que podem decidir contra quem embate um carro autónomo, em caso de emergência, e decidir quem recebe crédito de um banco, temos de conseguir avaliar as decisões que fazem." Até meados deste ano, todos os países na UE devem terminar as suas próprias estratégias de inteligência artificial para promover a inovação europeia na área. França foi dos primeiros países a definir linhas orientadoras, com a apresentação do Plano Macron, em Março, para recuperar o atraso na área.

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ortugal deve apresentar a sua própria proposta ainda este mês. "O nosso guia define princípios voluntários que cada país e empresa podem decidir cumprir. Não são uma lei como o Regulamento Geral para a Protecção de Dados," explica ao PÚBLICO Virginia Dignum, uma investigadora portuguesa, membro do grupo independente de peritos em inteligência artificial, que lecciona sobre a ética desses sistemas na Universidade de Umeå, na Suécia. "É preciso mostrar que há limites para a inteligência artificial", diz Dignum. "Não podemos correr atrás dos EUA e da China só porque sim. A forma como uma máquina chega a uma conclusão é diferente da de um ser humano, e isto por vezes leva a casos de discriminação, que é algo que a Europa não quer." Dá o exemplo da Amazon, nos EUA, que em 2015 desistiu de um sistema de recrutamento baseado em inteligência artificial porque os algoritmos escolhiam recorrentemente contratar homens em vez de mulheres para empregos em informática.

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motivo tinha que ver com o facto de os modelos terem aprendido com base em currículos enviados à empresa durante um período de dez anos - e a maioria tinha sido enviada por homens, reflexo do domínio masculino naquela indústria. Outro exemplo: pesquisar "gorilas" no Google já foi sinónimo de pesquisar negros (a empresa corrigiu o problema manualmente). 

É preciso mais investimento 

A par da ética, a União Europeia quer reforçar o investimento na área. Em 2016, dados da analista McKinsey Global mostram que o investimento europeu em inteligência artificial não ultrapassava os 3,5 mil milhões de euros, enquanto na China se investia mais de sete mil milhões de euros e nos EUA até 20 mil milhões. "Não serve de nada definir boas regras se não há investigação e não se produz nada na Europa e todas as empresas de inteligência artificial são chinesas e norte-americanas", diz Ana Paiva, investigadora de Inteligência Artificial no Instituto Superior Técnico. O seu trabalho foca-se na forma como os sistemas artificiais interagem com os humanos. "É importante investir em normas e guias de ética, e nisso a Europa tem feito um excelente trabalho, mas não pode ser o único foco." Para assegurar a competitividade na área, em Maio de 2018 a Comissão Europeia anunciou que queria que os sectores público e privado da União Europeia aumentassem o investimento na investigação e na inovação no âmbito da inteligência artificial em pelo menos 20 mil milhões de euros até ao final de 2020.


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e forma a apoiar os esforços, a Comissão também está a aumentar os seus investimentos para 1,5 mil milhões para o período de 2018 a 2020, no âmbito do programa de investigação e inovação Horizonte 2020. "Tem existido um crescimento enorme na inteligência artificial, só que na Europa a dimensão não tem sido a mesma do que no resto do mundo. A Europa tem sido lenta a responder aos pedidos dos investigadores", diz Ana Paiva. E frisa: "[Hoje] vê-se uma corrida a dois de que não fazemos parte." Virginia Dignum discorda da visão de "corrida" pela inteligência artificial. O guia europeu, além de definir regras para a Europa, deve ajudar os utilizadores a decidir usar, ou não, tecnologia estrangeira: "Em vez de competir, pode optar-se pela certificação. É preciso dar a escolha aos europeus", diz. A investigadora dá um exemplo: "Quando vamos ao supermercado, todos podemos escolher entre ovos de cativeiro e ovos orgânicos. Não sabemos distingui-los a olho nu, mas temos acesso a certificados que nos garantem de onde vêm. Com a inteligência artificial, não temos nada disso. Ou usamos e confiamos no Google, ou não temos nada." 

E os dados?

Para substituir a tecnologia das grandes empresas norte-americanas, é preciso um acesso organizado a dados que a Europa ainda não faz. "Durante muito tempo, a Europa esteve focada em arranjar formas de proteger os dados pessoais, e isso levou a que a Europa se atrasasse um pouco. Vemos os dados pessoais como um direito nosso", comenta o académico Paulo Novais, professor na Universidade do Minho e presidente da Associação Portuguesa Para a Inteligência Artificial. "Nos EUA, os dados são um bem transaccionável e na China há pouca regulação e o Governo usa dados para monitorizar os cidadãos." Desde 2014 que Pequim está a desenvolver um sistema de classificação e hierarquização social a partir dos dados pessoais que os cidadãos entregaram a aplicações móveis, como a Tencent e a Alibaba. Para Novais, o novo Regulamento Geral para a Protecção de Dados (RGPD) tem potencial para permitir à União Europa reconquistar terreno, ao definir uma linguagem comum para o tratamento de dados. Desde 2018 que o documento define regras sobre dados pessoais na União Europeia. "Com o RGPD surgem novas oportunidades para facilitar parcerias e partilha de dados", sugere o académico. Por exemplo, através de uma rede europeia de partilha de dados entre várias empresas. 

O AI4EU (Inteligência Artificial para a União Europeia) é um projecto, lançado no começo do ano, que procura desenvolver o ecossistema europeu ao reunir o conhecimento, os algoritmos, as ferramentas e os recursos disponíveis. "Nesta altura é preciso começar a definir áreas prioritárias para cada país", diz Novais. "Não podemos atirar para todo o lado, temos de escolher. Independentemente da Europa, os países têm de desenvolver as suas próprias estratégias nacionais." E acrescenta: "Usando uma metáfora: na inteligência artificial, não importa em que carruagem vamos, mas temos de apanhar o comboio. Caso contrário, vamos ser considerados pouco relevantes no espaço económico mundial."

Notícia: Público