Mestre em Educação pela UMinho, Graça Sanches é uma das 100 vozes mais influentes de África e está ligada à ONU desde 2017. Em Cabo Verde dirigiu a Rede de Mulheres Parlamentares e foi diretora do Ensino Pré-Escolar e Básico do Ministério da Educação.

Recorda-se do seu primeiro dia na UMinho? E em Braga?
Sou de Cabo Verde e, depois da licenciatura, cheguei a Braga cheia de sonhos! Estava dividida entre regressar à terra natal, a minha meta inicial, e o desejo de continuar os estudos. Já conhecia a cidade, mas achava-a muito fria. Na UMinho fomos muito bem recebidos. Ainda me lembro do sorriso da professora Isabel Barca, minha referência até hoje. Erámos menos de dez alunos e a empatia aconteceu logo. Isso foi fundamental para o sucesso do curso.
 
Já tinha realizado a licenciatura em História e decidiu prosseguir com um mestrado em Educação - Supervisão Pedagógica em Ensino da História na academia minhota. Porquê?
Quando terminei a licenciatura no Porto, senti-me injustiçada pela nota que me deram, apesar de ter adorado o estágio curricular na Escola Secundária António Sérgio, em Vila Nova de Gaia. Desabafei com um professor, meu conselheiro, que me questionou sobre o que eu gostaria de fazer no futuro e o que mais tinha gostado no curso. Respondi-lhe que dar aulas era o meu sonho desde criança e que um dos momentos mais marcantes da formação tinha sido o estágio. Foi então que ele me falou do Instituto de Educação e da professora Isabel Barca. Acabei por escolher a UMinho por essas referências, pela reputação da própria Universidade e pelos elogios de colegas cabo-verdianos que aí estudavam.
 
Que momentos deixaram mais saudades?
Estar com os colegas e professores. Os colegas eram fantásticos, cada um com uma experiência de vida e profissional que me ajudou a enriquecer. Sinto imensas saudades das viagens de carro do Porto a Braga com a minha amiga Cláudia Amaral. Os professores eram incansáveis e o seu profissionalismo motivou-me bastante. Ainda hoje sinto falta desse ambiente.

“Sempre quis ser professora”
 
Chegou a Portugal em 2000, depois de ter concluído o ensino secundário em Cabo Verde. Como surgiu esta oportunidade de estudar fora?
Sempre quis ser professora. Quando terminei o 12.º ano, ainda não existiam no país licenciaturas em História, apenas bacharelatos. Candidatei-me a uma vaga em Portugal, no âmbito de uma parceria entre os dois países, e consegui entrar na minha primeira opção, na Universidade do Porto. Lembro-me que a minha família queria que fosse para Lisboa, mas insisti até conseguir convencer o meu pai. Até arranjei emprego antes da partida.
 
E como foi a adaptação ao país e à cultura?
Não tive muitos problemas com a cultura, porque fui mantendo uma forte ligação com Portugal devido a vários familiares que aí residem. Para mim, o mais difícil foi o frio e ter de andar de guarda-chuva no inverno. Nunca tinha usado guarda-chuva na vida! Em Cabo Verde chove pouco e quando acontece fazemos uma festa e tomamos banho [risos]! Tive muitas saudades da família, sobretudo dos meus irmãos.
 
Regressar a Cabo Verde depois de terminar o mestrado fazia parte dos planos?
Sempre fui muito organizada em termos de metas. Com 12 anos, saí de casa dos meus pais, em São Francisco, para continuar os estudos em Praia, capital do país, onde vivi com os meus irmãos até completar o secundário. Sempre quis regressar depois do curso, embora tivesse dupla nacionalidade e pudesse permanecer em Portugal. Estudava e trabalhava e, ainda assim, consegui fazer a licenciatura e o estágio curricular ao mesmo tempo. Foi difícil, mas concentrei-me na meta inicial: trabalhar para o meu país.

E começou logo a dar aulas numa escola secundária de Praia. Correu bem?
Sim e foi uma aprendizagem para toda a vida. O estágio da licenciatura ajudou-me bastante. Quando cheguei, depois do primeiro ano de pós-graduação na UMinho, consegui colocação numa escola do centro da cidade graças ao meu currículo. Foi a primeira experiência profissional em Cabo Verde. Tive de dar aulas e fazer a minha tese de mestrado à distância, embora com algumas deslocações a Braga. Consegui adaptar-me bem ao sistema educativo cabo-verdiano e integrar-me sem grandes problemas na comunidade educativa. Estudar a vertente “escola-comunidade” durante o mestrado foi fundamental para a minha integração.
 
Aos 27 anos foi convidada pelo Ministério de Educação para ser diretora do Ensino Pré-Escolar e Básico de Cabo Verde. Um desafio aliciante para alguém daquela idade...
A pessoa que me convidou para o cargo acompanhava o trabalho que desenvolvia na escola e considerou que eu poderia dar um contributo maior a nível nacional. Além de dar aulas, fazia parte dos grupos organizados da escola e fui subdiretora dos assuntos sociais e comunitários. Foi uma experiência difícil no início, uma vez que nunca tinha trabalhado tecnicamente com o ensino básico, mas também foi, por outro lado, uma grande aprendizagem. Era raro uma pessoa tão jovem assumir cargos semelhantes. Recordo-me que por vezes olhavam para mim como se fosse uma “intrusa”, mas consegui com o tempo uma boa sinergia com a equipa.
 
Voz ativa das mulheres ao mais alto nível
 
Três anos depois tornou-se uma das mais novas deputadas da 8ª legislatura (2011-16) de um país em pleno desenvolvimento. Que projetos destaca?
Enquanto presidente da Rede de Mulheres Parlamentares Cabo-Verdianas (RMP-CV) liderei dossiers inovadores. Em 2014, por exemplo, coordenei a primeira análise do Orçamento de Estado na perspetiva de género, no quadro do programa Pro PALOP-TL ISC, que visa o Reforço das Competências Técnicas e Funcionais das Instituições Superiores de Auditoria, Parlamentos Nacionais e Sociedade Civil para o controlo das finanças públicas nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e em Timor-Leste. Esse trabalho culminou com o primeiro Orçamento de Estado sensível ao género em Cabo Verde. Igualmente pela primeira vez, foi realizada uma fiscalização legislativa no Parlamento sobre a implementação da lei da violência baseada no género em todo o território nacional. Erámos uma voz ativa das preocupações das mulheres ao mais alto nível. E sempre que podíamos íamos ao encontro das mulheres nas suas comunidades para divulgar e dar a conhecer as leis aprovadas pelo Parlamento, enquanto ouvíamos as suas preocupações.
 
O seu compromisso para com a defesa e promoção da igualdade de género ganhou força nessa altura.
Sim, antes dedicava-me exclusivamente à educação. Quando assumi a presidência da RMP-CV, tive os meus primeiros contactos com a causa e, ao conhecer melhor a realidade e os fossos de género do meu país, tornei-me uma ativista pelas questões de género, mas sempre defendendo que a educação devia ser encarada como uma ferramenta importante para a mudança. Daí a minha felicidade ao trabalhar este dossier e ao integrar a comissão especializada de Educação e poder influenciar, desta forma, as políticas públicas.
 
Já não faz parte do Parlamento, mas está ligada às Nações Unidas. Como surgiu esse convite e que papel desempenha?
Quando terminei o mandato, trabalhei como consultora das Nações Unidas para os PALOP e Timor-Leste no âmbito do programa Pro PALOP-TL ISC. Dois anos depois, passei a integrar a equipa a tempo inteiro, trabalhando como Oficial Nacional para o Empoderamento da Mulher e Orçamentação Sensível ao Género para os PALOP e Timor-Leste. Queremos ter contas públicas mais transparentes, acessíveis e inclusivas. Para que estes objetivos sejam alcançados, é incontornável que os processos orçamentais dos seis países abrangidos passem a ser “sensíveis” ao género. É este o meu trabalho: influenciar todo o ciclo de planificação, orçamentação e fiscalização para garantir que as questões de género sejam tidas em conta.
 
Como avalia o caminho percorrido por Cabo Verde na última década?
Cabo Verde é um dos países de África que mais tem progredido em matéria de igualdade de género. O acesso à educação e às oportunidades foram massificados a nível nacional, do pré-escolar ao ensino superior. Atingiu-se a paridade nesse âmbito. Existem programas de apoio destinados aos alunos com mais dificuldades para acesso a transporte, alimentação e propina. Em relação às oportunidades económicas, continuamos com muitos desafios, sobretudo no acesso ao crédito e no apoio à transição da economia informal, principalmente agora com as restrições decorrentes da pandemia. No que tange à participação política das mulheres, a taxa de deputadas no Parlamento cabo-verdiano mantém-se abaixo da média mundial – menos de 30%. O Parlamento aprovou recentemente a Lei da Paridade para dar resposta a esse desafio. Enfrentamos também o desafio do combate à pobreza, que ainda tem rosto feminino. Acredito que estamos no bom caminho para atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU e melhorar significativamente no índice de pobreza. Por outro lado, o país conseguiu transversalizar as questões de género no quadro da planificação e orçamentação, tendo verbas destinadas a programas específicos para combater as desigualdades, o que representa um grande ganho.
 
Onde deseja ver o seu país no futuro? Ou seja, que sonhos tem para Cabo Verde?
Como sabe, vivo num país arquipelágico. Uma das coisas que mais me deixa triste são as assimetrias regionais, as oportunidades que diferem de ilha para ilha e de concelho para concelho. O meu sonho para Cabo Verde é que as assimetrias sejam cada vez menos e que as oportunidades sejam iguais para todos, a par do meu sonho para África, que é o de ver valorizado o trabalho não remunerado das mulheres.
 
Das figuras mais influentes de África

Já foi eleita uma das 100 personalidades mais influentes do continente africano e integrou a lista 100 Women da Okay Africa. Venceu ainda o Prémio Humanitário Pan-Africano sobre a Igualdade de Género e Advocacia 2016, o West African Youth Award 2017 e uma bolsa Mandela Washington Fellowship 2015, uma iniciativa do ex-Presidente Barack Obama. O que significam para si estas distinções?
É um reconhecimento pelo trabalho que tenho vindo a desenvolver. Em África, os jovens, em particular as mulheres, têm poucas oportunidades de ocupar cargos de liderança e participação política. Eu tive essa oportunidade e penso ter aproveitado bem. Isso constituiu um exemplo para a nova geração e deixou as pessoas com os olhos postos no meu trabalho e percurso. Apesar de viver num país pequeno à escala mundial, sinto que o meu trabalho é visível, o que aumenta a minha responsabilidade como ativista.

Sente, devido a isso, que está no caminho certo?
Sim, mas precisamos de mais estímulos, bons exemplos e trabalho concreto. Creio que os jovens conseguem rever no meu percurso o impacto na vida das pessoas. Além disso, penso que os desafios que o meu continente atravessa levam-me a lutar diariamente e a nunca desistir, apesar de nem sempre ser fácil.

A UMinho faz hoje 47 anos. Que mensagem gostaria de nos deixar?
É uma honra poder estar “presente” neste momento tão especial para a minha Universidade. É sempre um orgulho quando, mesmo à distância, vemos notícias da UMinho sobre rankings e prémios. Queria deixar uma mensagem de apreço e reconhecimento a todos os que passaram pelas várias equipas reitorais nestes últimos 47 anos. Contribuíram, todos, para construir uma história bonita! O forte legado da Universidade tem contribuído para o desenvolvimento de Portugal, mas também de outros países, pela via da internacionalização dos seus estudantes. Aproveito ainda para desejar sucesso à UMinho, especialmente neste momento difícil da pandemia, e encorajá-la a prosseguir com a sua nobre missão. 

As preferências de Graça Sanches
 
Um livro. “Aurora no deserto”, de Waris Dirie.
Um filme. “Titanic”, de James Cameron.
Uma série. Não tenho o hábito de ver séries…
Uma música. “Ami djam kria ser poeta” [Eu queria ser um poeta], de Paulino Vieira.
Um clube. Futebol Clube do Porto.
Um desporto. Caminhar ao ar livre.
Uma viagem. Tóquio, capital do Japão.
Um passatempo. Ouvir música.
Um vício. Roer as unhas [risos].
Um prato. Cachupa.
Uma personalidade. Amílcar Cabral.
Um momento. A minha infância.